Vícios bestas de linguagem são contagiosos em qualquer parte do mundo. Num país como o nosso, com índices tão altos de analfabetismo funcional e tão baixos de leitura, as barreiras imunológicas frangam mais. Tomar consciência do problema é a melhor vitamina.
O uso de possuir no lugar de ter é um dos vírus do momento. Semana passada, na página da rádio MEC FM no Facebook, lia-se que Mozart escreveu a ópera Idomeneo quando “possuía 25 anos de idade”. Um artigo acadêmico da área de pedagogia, escrito por doutores, afirma que alguém “possui uma dúvida”. São só dois exemplos – as ocorrências beiram o incontável.
Na raiz do modismo está a ideia torta de que possuir é um verbo mais bacana, mais nobre do que o humilde ter. O mesmo raciocínio que leva muita gente, principalmente quando escreve, a preferir palavras pomposas: esposo em vez de marido, automóvel por carro etc.
Só esse cacoete bacharelesco, velha mania nacional, já seria chato, mas as frases ali de cima têm um defeito pior. Possuir é sinônimo de ter, mas não é idêntico a ele. Sinônimos perfeitos não existem: mesmo quando o sentido deles coincide em todas as acepções (não é o caso aqui), restam as conotações, a aura de cada palavra. Nessas horas o ouvido é nosso melhor guia.
Possuir envolve posse. É um verbo mais solene, mais pesado, mais duradouro. Possui-se um bem ou valor (casa, carro, diploma). Possui-se um atributo que defina a personalidade do possuidor (inteligência, beleza, dom). Não se possui algo tão trivial quanto uma dúvida ou tão provisório quanto uma idade. Isso não possui (opa!) cabimento.
Em tais casos a palavra adequada é ter, um verbo leve, contingente e versátil. Ninguém vai estranhar se você disser que tem um violão, embora também pudesse dizer que o possui. Mas experimente dizer que possui calafrios quando vê a língua ser maltratada assim…