O “vazamento” do discurso em que o vice-presidente Michel Temer fala do impeachment como se ele já estivesse aprovado na Câmara dos Deputados, na última segunda-feira, adiantou o relógio político brasileiro em pelo menos uma semana. O salto no tempo teria sido acidental, alegou Temer em sua defesa, mas a probabilidade sugere o contrário. Na política – em oposição à mecânica dos fluidos, campo onde a palavra nasceu com sentido literal – vazamentos raramente ocorrem por acidente.
O que não se discute é que, por cálculo ou não, o homem que no dia seguinte Dilma Rousseff chamaria de traidor e “chefe conspirador” teve naquele momento uma ejaculação precoce monumental, comparável à de Fernando Henrique Cardoso em 1985, ao se sentar antes da hora na cadeira de prefeito de São Paulo que Jânio Quadros acabaria por lhe tomar nas urnas. (Quem achou de mau gosto a metáfora sexual deve levar em conta que, precoce ou pontual, a ejaculação é sempre uma forma de vazamento.)
Escalado em geral no papel de vilão, o substantivo “vazamento” é uma das estrelas do vocabulário da atual crise política. Há pouco mais de um mês, Eugênio Bucci criticou neste caderno o abuso que ele vem sofrendo no discurso governista, que sova a tecla da “ilegalidade” na tentativa de desqualificar o trabalho de jornalistas dedicados a expor a trama de corrupção em que o país foi enredado. “Até podemos chamar de ‘vazamento’ a informação sigilosa que desliza, por algum motivo, para fora do âmbito de controle do poder”, escreveu Bucci, “mas não podemos chamar de ‘vazamento’ uma reportagem, mesmo que, para a realização dessa reportagem, possa ter sido usado o conteúdo informativo de um ‘vazamento’. O nome de reportagem é reportagem.”
Ocorre que a ética do vazamento é cambiante por natureza. Sempre negativo pela lógica da cápsula político-administrativa que busca resguardar o sigilo de determinada informação, ele pode ter valor positivo no ambiente social do lado de fora. Nem tudo o que vaza é ouro, claro, mas tal ambiguidade está na raiz de muitas das páginas mais gloriosas do jornalismo. E como será que se deu o vazamento semântico que conduziu a palavra da acepção de “ato ou efeito de vazar” para a de “ato de fazer-se pública uma notícia que não deveria ser divulgada” (definição do Houaiss)?
Quando recuamos o suficiente na história, encontramos lá no início os termos latinos vacuus e vacare (“estar vago”). Se o DNA desses antepassados é facilmente reconhecível em termos como “vácuo”, “evacuação” e “vaga”, o caso de vazamento envolve uma árvore genealógica mais tortuosa. Foi o adjetivo vacivus (“esvaziado”, derivado de vacare) que, tendo gerado no século XIII nosso “vazio”, tornou-se cerca de cem anos depois, em formação exclusivamente portuguesa, avô de “vazar”.
Daí para o substantivo “vazamento” a distância era de um mero sufixo, mas nem tudo é tão simples quando se brinca de Lego com palavras. Houve uma gestação de meio milênio até que as demandas técnico-científicas do século XIX fizessem nascer “vazamento”, a princípio um termo restrito ao universo físico, destinado a batizar escapes frequentemente acidentais (vazamento de gás, de água etc.), mas também programados (de metal líquido em siderúrgicas, do forno para as fôrmas).
A ideia de algo que escapa de um recipiente vedado, fugindo ao controle de quem deveria guardá-lo, parece óbvia aos falantes de hoje quando se trata de informação. A metáfora é cristalina mesmo, mas também aí existe uma história. É provável que o primeiro passo nesse sentido tenha sido dado na França com uma palavra ligeiramente diferente: fuite, que em sentido primário significa “fuga”, mas também usada desde meados do século XIX na acepção de escapamento de gás ou líquido. Em um texto de 1899 assinado pelo futuro primeiro-ministro Georges Clemenceau, o substantivo fuite foi empregado – supostamente pela primeira vez – para designar a divulgação de documentos secretos do ministério da Guerra.
Não se deve descartar também uma influência do inglês leak, palavra que compartilha com nosso “vazamento” a maioria das acepções, das literais às figuradas, e que passou a ser empregada com o sentido de “divulgação de informação secreta” em meados do século XX – anteontem, portanto. Seja como for, é incerta a data de estreia de tal acepção em português. O bom Dicionário de Usos do Português do Brasil, de Francisco S. Borba, traz um exemplo colhido em dezembro de 1979 no jornal maranhense O Imparcial.
Curiosamente, a frase trata de “vazamentos no sucedâneo da Arena”, ou seja, o PDS, partido que naquele momento, extinto o bipartidarismo, acabava de tomar o lugar da agremiação política de apoio à ditadura – e que mais tarde se bifurcaria em siglas correspondentes aos atuais DEM e PP. A acepção de “quebra de sigilo” já circulava antes disso entre nós, mas há justiça poética no fato de que seu registro mais antigo num dicionário data de um regime de força, aquele que, tendo menos transparência, torna os vazamentos mais bem-vindos.
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Este artigo foi publicado em minha coluna no caderno Aliás do “Estado de S.Paulo”.
Fiquei maravilhada com seu artigo. Sou grata a meu estimado amigo Silas Camilo por ter me indicado seu site. Parabéns pelo trabalho. Abraços.
Obrigado, Marli. Apareça sempre. Um abraço.