Literalmente, mas nem tanto

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“Estou literalmente frita”, diz a moça que acabou de perder o emprego, sem saber que desperta na imaginação de seu interlocutor quadros terríveis de violência medieval. Teriam os perpetradores de tal barbaridade usado azeite, manteiga ou óleo de girassol?

Nenhuma das alternativas acima, claro. A moça desempregada quer dizer que está figuradamente frita, mas erra o advérbio e acaba usando um de sentido oposto. O máximo que se pode dizer em sua defesa é que tem a companhia de multidões.

Não é de hoje que o advérbio literalmente vem sendo usado de forma liberal demais, como se seu papel fosse o de intensificar, frisar, quando tem função bem diferente. Quer dizer “ao pé da letra” e indica que uma palavra ou expressão não deve ser compreendida, naquele caso, em sentido figurado.

De modo geral, emprega-se literalmente em duas situações: para destacar que uma transcrição ou tradução é meticulosamente fiel ao original ou quando – quase sempre com intenções cômicas, espirituosas – uma expressão que poderia ser compreendida em sentido figurado aparece em sua acepção mais básica, literal.

Alguns exemplos de uso adequado do advérbio, todos no campo da comédia ligeira: “O bombeiro hidráulico entrou pelo cano – literalmente”; “Escassez de seringas na saúde pública é o fim da picada – literalmente”; “Brasileiro vai para o espaço – literalmente”.

Como se vê, mesmo como recurso cômico o literalmente é de eficácia duvidosa. Tem sua hora, mas recomenda-se usar com parcimônia. A mesma parcimônia que devemos exercitar diante da moça “literalmente frita” e sinceramente aflita, contendo o impulso de lhe perguntar sobre a manteiga e o óleo de girassol.

Lições de português têm hora.

Lindo de morrer, lindo de viver

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– Querido, esse sapatinho de bebê não é lindo de viver? Pensei em comprar pro filhinho da Lívia.

– Concordo: lindo de morrer.

– De morrer, não. De viver!

– Lindo de viver não existe, meu amor.

– Ih, lá vem você!

– Eu me recuso a usar eufemismo de hipérbole. Ou é eufemismo ou é hipérbole. A pessoa tem que escolher.

– Não estou nem aí pra sua cartilha de português, sabichão.

– Entendo. Você prefere a cartilha da Hebe Camargo.

– Pensa um pouco: você acha que eu ia dar um sapatinho lindo de morrer para um bebê, uma pessoa que está começando a vida? Que tipo de mensagem eu estaria passando, hein?

– Está vendo? Agora você está morrendo de raiva de mim.

– Estou mesmo. Odeio esse seu lado pedante.

– E por que não diz que está vivendo de raiva?

– Não enche.

– Sabe por quê? Porque não faz o menor sentido, querida. Porque a ideia da hipérbole é justamente criar um absurdo que intensifique a mensagem, que dê colorido à expressão. Colorido às vezes até literal: azul de fome, verde de ciúme e tal. Se a ideia deixa de ser absurda para ser razoável, fofinha, a hipérbole perde o sentido. Quer dizer: esse sapatinho é tão lindo que você poderia morrer por ele.

– Não acho tão lindo assim. Não morreria por ele, nem perto disso. Vamos embora.

– Ei, não vai comprar?

– Desisti. Seu papo matou a beleza dele.

– Tudo bem.

– Às vezes você é tão chato que eu tenho vontade de cortar os pulsos, sabia?

– Parabéns, querida! Essa é a ideia!

Ninguém ‘possui’ a idade que tem. E possuo dito!

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Vícios bestas de linguagem são contagiosos em qualquer parte do mundo. Num país como o nosso, com índices tão altos de analfabetismo funcional e tão baixos de leitura, as barreiras imunológicas frangam mais. Tomar consciência do problema é a melhor vitamina.

O uso de possuir no lugar de ter é um dos vírus do momento. Semana passada, na página da rádio MEC FM no Facebook, lia-se que Mozart escreveu a ópera Idomeneo quando “possuía 25 anos de idade”. Um artigo acadêmico da área de pedagogia, escrito por doutores, afirma que alguém “possui uma dúvida”. São só dois exemplos – as ocorrências beiram o incontável.

Na raiz do modismo está a ideia torta de que possuir é um verbo mais bacana, mais nobre do que o humilde ter. O mesmo raciocínio que leva muita gente, principalmente quando escreve, a preferir palavras pomposas: esposo em vez de marido, automóvel por carro etc.

Só esse cacoete bacharelesco, velha mania nacional, já seria chato, mas as frases ali de cima têm um defeito pior. Possuir é sinônimo de ter, mas não é idêntico a ele. Sinônimos perfeitos não existem: mesmo quando o sentido deles coincide em todas as acepções (não é o caso aqui), restam as conotações, a aura de cada palavra. Nessas horas o ouvido é nosso melhor guia.

Possuir envolve posse. É um verbo mais solene, mais pesado, mais duradouro. Possui-se um bem ou valor (casa, carro, diploma). Possui-se um atributo que defina a personalidade do possuidor (inteligência, beleza, dom). Não se possui algo tão trivial quanto uma dúvida ou tão provisório quanto uma idade. Isso não possui (opa!) cabimento.

Em tais casos a palavra adequada é ter, um verbo leve, contingente e versátil. Ninguém vai estranhar se você disser que tem um violão, embora também pudesse dizer que o possui. Mas experimente dizer que possui calafrios quando vê a língua ser maltratada assim…