Uma semana em que o tradicional Colégio Pedro II, do Rio de Janeiro, adere ao suposto novo gênero neutro defendido por grupos feministas e LGBTs e pespega um “alunxs” em aviso da coordenação (foto do Globo, que noticiou o caso aqui) é uma semana ruim para a língua brasileira.
Não porque se trate de um caso de “novilíngua à (sic) serviço da agenda gay marxista”, como esbravejou um site evangélico, ou outras bobagens do gênero.
Vamos reconhecer logo: como provocação, tomada de posição política, expressão iconoclasta da liberdade de moldar a língua, o xis vale. A arroba que também se usa com frequência no mesmo papel é uma solução claramente superior (“alun@s”), mas tudo bem. Valem os dois.
O problema é que, como proposta de intervenção gramatical, esse xis (ou essa arroba) tem tanto valor quanto um emoji, um coraçãozinho que significa “amo”, um blz no lugar de “beleza”. Isto é, valor nenhum. Por razões poderosas e puramente linguísticas, nada a ver com ideologia, está condenado a ser um modismo esquecido em futuro não muito distante, como esquecidas foram as travessuras linguísticas do Seu Creysson.
“Alunxs” é um termo agramatical que inverte a ordem natural dos fatores de qualquer língua (começa escrito para depois ser oral) e, o que é pior, fracassa antes de atingir a oralidade. Como se pronuncia isso? Como se escreve, tratando-se de um par de dois gêneros, algo simples como “os dois”? “Xs dxxs”? Mas que trágico esse genocídio das vogais numa língua que tanto as ama, não? E de que forma resolver as flexões mais complexas em que os gêneros exigem números diferentes de caracteres, como “alunos lindões e alunas lindonas”? “Alunxs lindoxs” ou “lindoxxs”? (Melhor evitar, pensando bem. Vão dizer que é assédio.)
Digamos que até aí esteja valendo. Nem só de gramática vive o homem (e a mulher e o transexual e todo o etc. do mundo). Pinta o bigode na Mona Lisa quem quiser, pois entre outras coisas a língua é isso mesmo: uma caixa de Lego para o falante e um campo de batalha simbólica para diferentes grupos de interesse.
O que torna a semana triste para o português brasileiro é ver um colégio respeitável como o Pedro II, onde lecionaram gramáticos do tamanho de Said Ali e Celso Cunha, entre outros, se render de forma acrítica ao modismo.
Não é este o papel de uma instituição de ensino que se leva a sério. Perdendo-se a chance de usar “alunxs” como ponto de partida para uma reflexão profunda sobre o idioma, quem vai explicar ao pessoal que todo esse barulho se baseia numa visão ingênua da língua (gênero gramatical é uma coisa, sexualidade é outra) e que o famoso “machismo ancestral” embutido no plural “alunos” é, do ponto de vista da gramática histórica, uma balela?
Com a palavra, o linguista Aldo Bizzocchi (artigo completo aqui):
…a razão pela qual usamos o gênero masculino para nos referir a homens e mulheres não é ideológica, mas fonética. Em latim, havia três gêneros – masculino, feminino e neutro –, cujas terminações mais frequentes eram ‑us, ‑a e ‑um. O chamado gênero complexo, que agrupa substantivos de gêneros diferentes, era indicado em latim pelo neutro.
Quando, por força da evolução fonética, as consoantes finais do latim se perderam, as terminações do masculino e do neutro se fundiram, resultando nas desinências portuguesas ‑o e ‑a, características da maioria das palavras masculinas e femininas, respectivamente. Ou seja, o nosso gênero masculino é também gênero neutro e complexo. Portanto, não há nada de ideológico, muito menos de machista, na concordância nominal do português.
Dito isso, e mandando a modéstia passear, acrescento que jamais será uma semana de todo ruim para o português brasileiro aquela que viu nascer um espaço virtual onde tudo isso pode ser debatido “sem caretice e sem vale-tudo” – bom, pelo menos eu tentei. Que venham as pedras inescapáveis.