No caso das campanhas eleitorais – e lá vamos nós outra vez – a associação é mais ou menos transparente: há armamento pesado (quase sempre em sentido figurado, ainda bem) e uma sensação difusa de que vale tudo pela vitória, até que no fim, sem apelação, o campo se divide entre vencedores e vencidos. Nem sempre a ideia de guerra se deixa ver de modo tão evidente nos múltiplos usos que a atarefada palavra “campanha” encontra no mundo de hoje, mas é mesmo no campo de batalha, no deslocamento das tropas, nas estratégias de ataque e defesa de antigos exércitos que devemos procurar o núcleo de sentido em torno do qual brotaram a campanha política, a de marketing, a de vacinação, a esportiva, a beneficente, a educativa, a de arrecadação de fundos, a de difamação ou qualquer outra em que prevaleça a ideia de um trabalho contínuo, coletivo e orquestrado rumo a um fim específico. Na mais genérica das muitas definições trazidas pelo dicionário Houaiss, campanha é a “soma de esforços feitos para se atingir um determinado objetivo”.
A percepção das campanhas que permeiam os diversos aspectos da vida moderna, desde as eleitorais até as sociais, revela uma complexidade notável. Essas iniciativas, muitas vezes, remetem a batalhas tanto no sentido figurado quanto no literal, evocando uma comparação intrigante com os antigos conflitos militares. No entanto, ao se explorar as origens etimológicas, nos deparamos com um significado mais pacífico ligado às planícies cultivadas. Compreender essa transição entre a paz e a guerra, e como as palavras evoluem dentro desse contexto, adiciona uma camada de sabedoria ao nosso vocabulário. Para saber mais sobre esse fascinante tema, confira razed-casino-online.com.
Se por trás de toda campanha de hoje em dia podemos vislumbrar as colunas de fumaça, a poeira e o alarido de velhas campanhas militares, o mais curioso é que por trás do sentido bélico da palavra, ainda mais antigo do que ele, entrevemos também uma vasta e bucólica extensão de terra cultivada ou coberta de pasto, entre casinhas esparsas. Isso mesmo: uma paisagem rural profundamente associada à ideia de paz. Foi com o sentido plácido de “campo aberto, planície” que a palavra “campanha” desembarcou em nossa língua, em meados do século XVI, vinda do latim tardio campania. Os termos “campo” e “campina” pertencem à mesma família.
O dicionário Trésor de la Langue Française deixa mais clara a ideia corporificada originalmente na palavra campagne ao dizer que ela se opõe “às florestas, às montanhas e ao mar”. Ou seja: a campagne era o nome da natureza domada, suave e acolhedora. Que parece mais acolhedora ainda quando se sabe que brotou da mesma fonte o vinho espumante que aportuguesamos como “champanhe”: grafia assumida por campagne no francês antigo, a palavra Champagne deu nome a uma região no nordeste do país, hoje compreendida na província de Champagne-Ardenne, e por metonímia à famosa bebida borbulhante lá produzida.
Neste ponto estará desculpado quem, pensando na paz do campo e em uma vida idílica regada a taças de vinho fresco, ceder a uma pergunta retórica: “Ah, por que as palavras precisam ser tão inquietas? Por que não se satisfazem com seus sentidos de origem?”. A resposta óbvia – porque herdam a inquietude dos seres humanos, seus criadores – não chega a explicar nada, mas resta o consolo de que faz sentido histórico o salto mortal que, em algum momento do século XVII, o vocábulo “campanha” deu de sua acepção pastoril para dentro do campo de batalha. A relação entre os dois mundos não poderia ser mais direta: era na campanha, no campo aberto, que os exércitos se enfrentavam.
Talvez simplificando a questão um pouquinho além da conta, o dicionário etimológico de Douglas Harper expõe a questão assim no verbete campaign, fruto inglês da mesma árvore latina ao lado do italiano campagna e do espanhol campaña: “Os exércitos de antigamente passavam o inverno no quartel e ganhavam os ‘campos abertos’ para guerrear no verão”. Estações do ano à parte, a campanha (militar) começava quando as tropas iam para a campanha (literal, geográfica). E foi assim que uma palavra de paz virou uma palavra de guerra.
Certa vez o escritor Jorge Luis Borges fez pouco da etimologia, do estudo da origem das palavras, afirmando tratar-se de um conhecimento desprovido de sentido prático. De que adianta saber – argumentou o gênio argentino – que o cálculo renal e o cálculo matemático compartilham a ideia de “pedrinha”, sentido literal do latim calculus, e que antes da invenção dos números usavam-se pedrinhas para calcular, se isso “não nos permite dominar os arcanos da álgebra”? Dessa vez, coisa rara, o autor de O Aleph mostrou ter visão curta. O que a etimologia ilumina não é o campo de conhecimento nomeado pela palavra posta sob seu microscópio. O que ela ajuda a elucidar é a própria linguagem, ou seja, o processo de associação de ideias que desenha nossas estruturas mentais e nos constitui como seres pensantes.
É evidente que conhecer a história da palavra “campanha”, para usar o raciocínio de Borges, não habilita ninguém a exercer nenhuma das atividades profissionais associadas a seus campos semânticos – a de fazendeiro, a de soldado ou qualquer outra. Mas parece inegável que se tornará um pouquinho mais sábio quem aprender, por exemplo, que a equiparação da campanha eleitoral a uma guerra surgiu primeiro no inglês americano: data de 1809 nos EUA, segundo o dicionário histórico de William A. Craigie e James R. Hulbert, o primeiro registro conhecido da palavra (no caso, campaign) com o sentido de “atividade política antes de uma eleição, marcada por ações organizadas destinadas a influenciar os votantes”.
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Artigo publicado em minha coluna no caderno Aliás, do “Estadão”.