Calamidade, todo mundo sabe, é catástrofe. O dicionário Houaiss esmiúça seu sentido assim: “grande perda, dano, desgraça, destruição, especialmente a que atinge uma vasta área ou grande número de pessoas”. O estrago calamitoso vem da antiguidade e, pelo menos no começo, era provocado por fenômenos naturais: o substantivo latino calamitas aparece no clássico dicionário Saraiva com o sentido principal de “perda das colheitas causada pela geada”.
Não se trata, claro, de dizer que essa é sua única aplicação correta. Raríssimas palavras passam a vida confinadas no bercinho semântico em que nasceram, e já ao desembarcar no português, nos últimos anos do século 16, a calamidade tinha se expandido para abranger desgraças variadas. Nenhuma delas envolvia àquela altura gestão desastrosa, gastos maiores que a arrecadação, atraso de salários, corrupção crônica, serviços públicos à míngua, irresponsabilidade fiscal e compromisso deslumbrado com um evento caro demais para o orçamento da casa. Mas também isso mudou.
A calamidade que se abateu sobre o estado do Rio de Janeiro às vésperas dos Jogos Olímpicos dispensou por completo a contribuição dos fenômenos naturais, a menos que, injustamente, se ponha na conta do mar bravio – e não da incompetência, neste caso do poder municipal – o desabamento da ciclovia de São Conrado. Aquele escandaloso sinal de calamidade foi enviado ao mundo quase dois meses antes do decreto no qual, na sexta-feira 17, o governador em exercício Francisco Dornelles oficializou o deus nos acuda. Ou, para ser preciso, o Brasília nos acuda. Já na última terça, 21, o Planalto anunciou um “apoio financeiro” de R$ 2,9 bilhões ao governo fluminense para que ele leve a cabo a preparação do Rio de Janeiro para as Olimpíadas.
Como se não bastasse a epidemia de zika, a decretação do estado de calamidade pública é propaganda negativa para um evento gerador de turismo, mas não disfarça sua esperteza no campo legal ao determinar a suspensão temporária de ritos e processos administrativos que em condições normais impediriam um estado inadimplente de receber empréstimos e remanejar recursos já destinados a outras áreas. O texto assinado por Dornelles menciona como justificativas para o ato extremo a “grave crise econômica” e a “queda da arrecadação, principalmente a observada no ICMS e nos royalties e participações especiais do petróleo”. Queixa-se da “interrupção da prestação de serviços públicos essenciais” e acena com a perspectiva de “total colapso na segurança pública, na saúde, na educação, na mobilidade e na gestão ambiental”.
Nada disso é pouco. Tudo isso está ausente da definição que o Houaiss apresenta para “calamidade pública”, essa figura do vocabulário jurídico: “interrupção da vida normal de uma coletividade, por efeito de desgraça pública, catástrofe ou desastre decorrentes de fenômenos naturais ou de lutas armadas”. Na falta de geadas, furacões e guerras, servem políticos mesmo. Além da pindaíba carioca e fluminense, isso acaba de ser demonstrado também pelo tiro no pé dado pela Grã-Bretanha ao votar a favor de seu desligamento da Europa – mais um motivo para fazer de calamidade a Palavra do Mês.
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A história do termo não chega a ser calamitosa, mas passa longe de ser segura. Etimologia nunca foi ciência exata.
Antigamente era considerado pacífico entre os estudiosos que seu radical provinha do latim calamus, este por sua vez um decalque do grego kálamos, “haste, cana, junco” – o mesmo sentido principal que ainda hoje conserva em nossa língua a pouco usada palavra “cálamo”. Mas qual é a relação entre o talo da planta e o desastre, a hecatombe, a praga? Bem, calamitas seria “o prejuízo causado por um temporal, por uma saraivada que quebrasse as hastes verdes do trigo” (palavras do filólogo brasileiro Antenor Nascentes), deixando no chão da lavoura um desolador tapete de cálamos partidos. Calamidade.
A tese foi abraçada por pesos pesados da matéria, como o catalão Joan Corominas, e ainda hoje pode ser considerada dominante. Uma hipótese alternativa é que “calamidade” teria um parentesco perdido com “incólume”, ou seja, intacto. Convenhamos que a tese do cálamo faz muito mais sentido para os leigos – mas isto, embora possa ser visto como vantagem, é o ponto em que se apegam os revisionistas da calamidade. Um destes é o linguista austríaco Alois Walde, que considerava o elo pastoril com os cálamos um exemplo de “etimologia popular”, como os estudiosos chamam as associações que o povo estabelece entre uma palavra nova e outra já conhecida em resposta a semelhanças fortuitas de som e sentido.
Muitas vezes essas ligações imaginárias interferem no desenvolvimento do vocábulo recém-chegado, mas não estão em sua origem. Um exemplo clássico de etimologia popular é “floresta”, que o português foi buscar no século 14 no francês antigo forest (hoje forêt). No princípio de sua aclimatação na Península Ibérica, a palavra era furesta ou foresta. Ocorre que muitos ouvintes achavam que teria alguma coisa a ver com “flor”. Não tinha, mas passou a ter.
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Publicado em minha coluna no caderno Aliás, do “Estadão”.