‘Antes de mais nada’ e o fetiche no pé da letra

Girl wrote in a diary with books and laptop

Antes de mais nada (que significa “em primeiro lugar”) é mais uma expressão do português que, embora tenha uma história nobre, vem sofrendo com a patrulha de quem tenta enquadrar a língua em moldes literais demais. “O que vem antes de nada? O que está depois de tudo”, riem os podólatras da letra.

Bobagem. A maior prova de que a locução faz sentido é o fato de ser compreendida por qualquer um. Muitas vezes é peculiar a lógica do idioma, um dos traços daquilo que se chama com algum romantismo de “espírito da língua” – com o qual é sempre sábio estar em comunhão, não em guerra.

Antes de mais nada significa (e tem sonoridade melhor que) “antes de qualquer outra coisa”. Em outras palavras, “antes de tudo”, numa inversão entre os polos positivo e negativo que só estranhará quem se recusar a aceitar que pois não exprime concordância e pois sim, negação.

Claro que cada um fala como quiser e tem o direito de banir antes de mais nada do seu discurso. Pode até fazê-lo por razões irrepreensíveis: se busca objetividade e concisão, essa locução pode mesmo parecer palavrosa. O problema começa quando se tenta transformar tal decisão em lei universal.

Ao corrigir seus semelhantes com o argumento de que a expressão “não tem lógica”, o sujeito demonstra ignorância sobre como funcionam as línguas. Julga-se sabido, mas é apenas sabichão.

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Entre os autores consagrados que uma rápida busca revela terem usado antes de mais nada está o português Camilo Castelo Branco, que durante boa parte do século 19 foi considerado um prosador-modelo.

A lista inclui ainda Machado de Assis, Rui Barbosa, Carlos Drummond de Andrade e Clarice Lispector. No fim das contas, trata-se de uma escolha simples entre ficar na companhia deles ou abraçar os fiscais do literalismo.

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