Marqueteiro, um fracasso de ‘branding’

1456592513537Estamos naquela proverbial casa de ferreiro. É irônico que os marqueteiros, tão poderosos na hora de influenciar o rumo das multidões diante das urnas ou das prateleiras de um supermercado, sejam impotentes quando se trata de fazer o branding da própria atividade. O fato embaraçoso é que são – e, como em todo episódio de impotência, não adianta fingir espanto: “Isso nunca me aconteceu antes!”. Não cola. Acontece faz tempo, e a cobertura jornalística da prisão de João Santana (foto), responsável pela campanha da reeleição de Lula em 2006 e pelas duas de Dilma Rousseff, em 2010 e 2014, voltou a confirmar com ampla folga: “marqueteiro” é a palavra eleita pelo português brasileiro para designar o especialista em marketing, em especial o marketing político.

Não faz diferença que os próprios profissionais assim designados não gostem do nome, que consideram depreciativo. Sua luta para substituí-lo ora por marketista (ou marquetista), ora por marquetólogo (ou marketólogo), quando não por mercadólogo, esbarra numa dificuldade que Carlos Drummond de Andrade, no poema O lutador, resumiu assim: “Lutar com palavras/ é a luta mais vã”. Marqueteiro está além da consagração.

Para começo de conversa, sejamos quantitativos. Uma rápida consulta ao Google, oráculo do nosso tempo, revela um massacre digno do que foi promovido pela seleção alemã no Mineirão: contra a avalanche de 1,6 milhão de páginas trazidas pelo vocábulo “marqueteiro” (às quais será preciso somar ainda as 179 mil da variante ortográfica “marketeiro”), temos “mercadólogo” em segundo lugar, com 358 mil ocorrências. Depois piora muito.

“Marketista” granjeia apenas 186 mil paginetas e o resto é vexame: na soma de “marketólogo” e “marquetólogo”, não se chega a oito mil. Quando se trata de nomear marqueteiros propriamente eleitorais, como João Santana, a fórmula composta “consultor político” goza de algum prestígio (131 mil resultados), mas tem a óbvia desvantagem da prolixidade. Soluções sucintas costumam vencer.

Será que os profissionais de marketing têm razão quando alegam que “marqueteiro” é uma palavra carregada de conotações pejorativas? Sem dúvida. Pelo menos era assim no início, como comprova sua acepção menos rigorosa de “pessoa de qualquer ramo de atividade que se dedica sobretudo a se autopromover” – acepção bastante difundida, mesmo porque o tipo humano que descreve é abundante, e responsável por parte das ocorrências mencionadas acima.

O sufixo “eiro” tem mesmo conotações vulgares, pouco cultivadas ou pelo menos não especializadas. Com exceção da palavra “engenheiro”, costuma indicar no mundo das profissões o terreno das atividades não intelectuais (em vez do jornalista, o jornaleiro) ou comicamente rebaixadas (no lugar do pianista, o pianeiro). Entende-se que o marqueteiro – que tem curso superior e ganha muito bem, seja no caixa um ou no caixa dois – não queira estar em semelhante companhia.

Ocorre que a língua é irritantemente soberana. Embora Brasil e Portugal tenham a mania de reformar a ortografia a canetadas a cada duas gerações, interferir em seus movimentos profundos de som e sentido está muito longe de ser tão simples quanto regular por lei a superfície gráfica das palavras. Remar contra a corrente do idioma pode ser tão frustrante quanto tentar estocar vento, como bem sabem os profissionais formados em engenharia elétrica, que em geral não gostam de ser chamados de “engenheiros elétricos” – o modo como a maioria dos falantes leigos se refere a eles, e que nada tem de errado – e tentam convencer a sociedade de que são “engenheiros eletricistas”.

(Desejo-lhes boa sorte, mas convém aprimorar o argumento ingênuo de que um engenheiro só seria elétrico se desse choque. O físico nuclear também não é radioativo e o guarda florestal não corre risco de desmatamento. Apenas herdam, como tantos profissionais, o adjetivo que distingue sua especialidade, algo que todos nós entendemos sem necessidade de explicação – a isso chamam “espírito da língua”.)

Resta compreender, enfim, por que o português brasileiro fez essa opção – impessoal, coletiva, mas opção – por um termo claramente depreciativo na hora de nomear os profissionais de marketing em geral e do marketing político em particular. Aqui arrisco, claro, mas não duvido que a resposta seja parecida com a seguinte.

Porque não estamos gostando nem um pouco da proeminência que publicitários e jornalistas transformados em babalorixás todo-poderosos ganharam no cenário eleitoral nas últimas décadas; porque, mesmo sabendo que guerra é guerra, coisa e tal, desconfiamos que vender políticos como se eles não fossem diferentes de marcas de sabão em pó vai acabar nos afogando a todos numa profusão de bolhas; porque talvez não haja muito que possamos fazer para devolver ao jogo eleitoral uma medida mínima de autenticidade, de espontaneidade, de integridade, mas existe uma coisa que podemos, sim, fazer. Chamar vocês de marqueteiros, isso podemos fazer. Seus marqueteiros!

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Este artigo foi publicado em minha coluna no caderno Aliás do “Estado de S.Paulo”.

‘Antes de mais nada’ e o fetiche no pé da letra

Girl wrote in a diary with books and laptop

Antes de mais nada (que significa “em primeiro lugar”) é mais uma expressão do português que, embora tenha uma história nobre, vem sofrendo com a patrulha de quem tenta enquadrar a língua em moldes literais demais. “O que vem antes de nada? O que está depois de tudo”, riem os podólatras da letra.

Bobagem. A maior prova de que a locução faz sentido é o fato de ser compreendida por qualquer um. Muitas vezes é peculiar a lógica do idioma, um dos traços daquilo que se chama com algum romantismo de “espírito da língua” – com o qual é sempre sábio estar em comunhão, não em guerra.

Antes de mais nada significa (e tem sonoridade melhor que) “antes de qualquer outra coisa”. Em outras palavras, “antes de tudo”, numa inversão entre os polos positivo e negativo que só estranhará quem se recusar a aceitar que pois não exprime concordância e pois sim, negação.

Claro que cada um fala como quiser e tem o direito de banir antes de mais nada do seu discurso. Pode até fazê-lo por razões irrepreensíveis: se busca objetividade e concisão, essa locução pode mesmo parecer palavrosa. O problema começa quando se tenta transformar tal decisão em lei universal.

Ao corrigir seus semelhantes com o argumento de que a expressão “não tem lógica”, o sujeito demonstra ignorância sobre como funcionam as línguas. Julga-se sabido, mas é apenas sabichão.

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Entre os autores consagrados que uma rápida busca revela terem usado antes de mais nada está o português Camilo Castelo Branco, que durante boa parte do século 19 foi considerado um prosador-modelo.

A lista inclui ainda Machado de Assis, Rui Barbosa, Carlos Drummond de Andrade e Clarice Lispector. No fim das contas, trata-se de uma escolha simples entre ficar na companhia deles ou abraçar os fiscais do literalismo.