Temer e a mesóclise: o homem pronominal

1464402647946O país passou sem escala dos anacolutos de Dilma Rousseff às mesóclises de Michel Temer. De um ponto de vista (digamos) psíquico-gramatical, a mudança faz o desfavor de sugerir que não há meio termo para o ser brasileiro: ou tropeçamos a cada passo na desestruturação lógica e sintática, tentando fazer com que palavras e coisas se encaixem a golpes de marreta, ou caímos na cafonice bacharelesca que azeita as engrenagens do discurso enquanto o afasta da fala popular e o torna marotamente difícil, concebido menos para se comunicar com cidadãos do que para mesmerizar multidões. Em algum lugar profundo de nossa mentalidade, há uma placa de bronze na qual, sob uma efígie de Rui Barbosa e com nota de rodapé informando tratar-se de tradução do latim, está gravada esta mentira: “Falar enrolado é sinal de uma inteligência superior”.

Sim, este artigo trata de uma mera questão de forma. Em primeiro lugar porque por trás desta, se procurarmos bem, sempre há belos nacos de conteúdo. Mas não é só isso. Num momento em que o provocador Sérgio Machado faz o papel daquela mulher canastronamente oferecida do “teste de fidelidade” da TV e convida todos a confessar seus pecados, revestindo as tramoias brasilienses de um ar chanchadeiro, começa a se esboçar para a história do impeachment um enredo em que todos os lados da guerra política se igualam no objetivo de salvar a própria pele da ameaça representada por um intruso togado que não sabe brincar. Perde força até entre dilmistas de carteirinha a tese do “golpe judiciário-midiático”, sobe a da “frente ampla do abafa”. Num contexto político em que distinções clássicas de conteúdo tendem a virar geleia, afogadas no tacho do fisiologismo universal, prestar atenção às diferenças de forma talvez ganhe ainda mais importância.

“Procurarei não errar, mas, se o fizer, consertá-lo-ei”, disse Michel Temer na última terça-feira, ao anunciar suas primeiras medidas econômicas ao lado do ministro da Fazenda, Henrique Meirelles. Para seu crédito, deu uma risadinha após a tirada de intercalar o pronome oblíquo átono entre o radical e a desinência de “consertarei”. Reconhecia assim o que já virou a principal marca de seu estilo. Desde o “sê-lo-ia” do discurso de posse, dia 12, vinha angariando elogios e críticas. Houve quem se derretesse pelo domínio linguístico demonstrado pelo sucessor de uma presidente incapaz de juntar lé com cré. Houve quem apontasse o descompasso entre aquela ostentação mesoclítica e os pequenos deslizes gramaticais que Temer de fato comete para defender a tese de um retrocesso de comunicação entre o “coloquialismo” de Dilma e a pompa do presidente interino.

A mesóclise é a colocação do pronome oblíquo átono no meio do verbo, interposto a ele, em vez de antes (próclise) ou depois (ênclise). Ocorre apenas com formas verbais do futuro (“consertá-lo-ei”) e do futuro do pretérito (“sê-lo-ia”). No português brasileiro moderno, é basicamente entulho, uma peça do ferro-velho gramatical. Isso não quer dizer que não se deva estudá-la nas escolas: é preciso, sim, conhecer a história da língua e ter instrumentos para ler sem susto textos de épocas diversas, não só o que se publica hoje na internet. Também não significa que a mesóclise seja inteiramente destituída de aplicação contemporânea: para o humor, como sátira do discurso de um personagem antiquado ou metido a besta, é recurso muito eficaz. Além disso, como demonstra Temer, sua utilidade é inegável para quem deseja ser um personagem antiquado ou metido a besta.

Jânio Quadros, o presidente brasileiro que mais abusou da mesóclise, também lançava mão da linguagem formal para compor um estilo, mas parecia pôr mais humor na receita: ser o que chamamos hoje de “figura” estava em seus planos. Tanto que, personagem maior que a vida, entrou para o folclore político como autor de frases que nunca disse: “Fi-lo porque qui-lo”, por exemplo, em que o “porque” (que deveria atrair o pronome) torna a segunda ênclise um erro feio. O risco maior, no caso de Temer, nem é o de soar como um político da República Velha, algo que ele parece até desejar. É ser abatido precocemente pelos sucessivos erros de seu governo e entrar para a história como o homem-mesóclise: aquele que foi intercalado brevemente entre as duas metades do segundo mandato de Dilma.

Mais que gramatical, o problema da mesóclise é de cultura. Faz mais de meio século que os linguistas sabem disso: colocação de pronomes não é camisa de força sintática. Depende da fonética, do uso, da história, do estilo de cada comunidade de falantes. Mesmo assim, os ultraconservadores insistem em impor a colocação lusitana como padrão, traço de subserviência cultural que chega a ser incompreensível, para não dizer imperdoável, quase um século depois da Semana de Arte Moderna. “É urgente afastar a ideia de que a colocação brasileira é inferior à que os portugueses observam”, escreve o autor da Moderna Gramática Portuguesa. Um radical? Longe disso: aos 88 anos, membro da Academia Brasileira de Letras, Evanildo Bechara é o mais respeitado gramático brasileiro vivo.

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Artigo publicado em minha coluna no caderno Aliás do Estadão.

‘Ordem e progresso’: marketing político de época

16133225No dia 8 de setembro de 1892, o Jornal do Brasil atacou em termos inflamados a bandeira do Brasil, que naquele momento era uma criança de nem três anos completos. Pregando a substituição do pavilhão nacional – não fica claro se pela versão da bandeira dos Estados Unidos em verde e amarelo que tinha sido adotada brevemente, sob as graças de Rui Barbosa, nos primeiros dias da República –, o jornal carioca argumentava que o estandarte em cujo centro se inscreve o lema “Ordem e progresso” havia sido proposto “por um grupo sectário, insignificante, diminutíssimo em número, medíocre em valor social, antipático ao país e sem apoio nele”. Um grupo que, para piorar, tinha “por chefe invisível um decrépito filósofo francês”.

O jornal se referia aos positivistas e ao pensador Augusto Comte (1798-1857), autor da máxima da qual extraímos as palavras que cortam o disco azul estrelado envolvido pelo losango amarelo no centro do retângulo verde: “O amor como princípio e a ordem como base; o progresso como meta”. (Como se vê, do tripé positivista da sociedade ideal, não encontramos vaga para o amor.)

A história de nossa bandeira republicana e das resistências que ela encontrou está contada pelo historiador José Murilo de Carvalho em seu livro A formação das almas: o imaginário da República no Brasil, de 1990. É curioso reler o que ele diz à luz da adoção de “Ordem e progresso” como lema do governo Michel Temer, sacada atribuída ao marqueteiro político Elsinho Mouco e anunciada entre as primeiras medidas do presidente interino na última quinta-feira, antes mesmo da divulgação do ministério.

Não é que a divisa contrabandeada para dentro da bandeira em fins do século 19 por aquela “curiosa raça de pensadores que foram os positivistas”, sob a liderança de Benjamin Constant e diante do olhar sempre desconfiado de Deodoro da Fonseca, soe hoje, quase 130 anos depois, de um conservadorismo marcante. Ela já era conservadora no momento de sua adoção.

Mistura inusitada de escola filosófica e religião, a “Religião da Humanidade”, o positivismo fez grande sucesso no Brasil. Pregava um despotismo esclarecido que combinava bem com um país de “bestializados” (palavra que dá título ao mais famoso livro de Carvalho sobre o tema), em que a transição da monarquia para a república foi feita por uma pequena elite militar e civil diante da indiferença de uma população ignorante, que a tudo assistiu boquiaberta e sem nada entender.

“Progresso e ditadura” é, textualmente, o que o historiador lê por trás das palavrinhas que por lei devem ser escritas sempre em verde e sem serifa, no centro do carnaval cromático e geométrico da bandeira. Não é à toa que os governos militares inaugurados pelo golpe de 1964 tinham tanto apreço por elas.

O mesmo José Murilo de Carvalho nos ensina que os positivistas brasileiros, sendo apenas uma das forças políticas reunidas no confuso núcleo proclamador da República, foram os maiores propagandistas do novo regime, líderes da luta “pelo coração e pela cabeça dos cidadãos, por meio da batalha dos símbolos”. Se a importância da propaganda política já era bem conhecida no Brasil do século 19, seria ingenuidade supor que Temer tenha derrapado por descuido no conservadorismo extremo da marca que escolheu para seu governo tampão. Mesmo assim, chama a atenção que entre seus primeiros atos seja tão escancarado o desprezo por um mínimo aceno progressista.

Não se trata só do slogan comtiano. Tomando posse em meio a uma grita – parcial, mas estridente – de “golpe”, é notável que o substituto da primeira mulher presidente da República não tenha se dado ao trabalho de escalar uma única mulher no ministério. Constando entre as acusações mais marteladas a Dilma Rousseff a suspeita de ter nomeado Lula para protegê-lo da operação Lava Jato, é impressionante que Temer conceda foro privilegiado numa única canetada a sete investigados pela República de Curitiba.

Claro que existe uma diferença entre símbolo e substância. O inepto governo Dilma é um bom exemplo da exploração de signos vazios que sustenta grande parte do marketing político – do cinismo do slogan “Pátria Educadora”, lançado sobre a realidade de nossa catástrofe educacional, ao marco do feminismo encarnado por uma presidente em cuja gestão o abismo salarial entre homens e mulheres só fez crescer. Em sentido inverso, pode-se admitir em tese que a extinção do ministério da Cultura não indique necessariamente a desvalorização míope de uma das indústrias que mais crescem no mundo interconectado e para a qual o Brasil tem evidente vocação.

No entanto, quando se sabe que havia entre as amigas e correspondentes de Augusto Comte uma pensadora brasileira chamada Nísia Floresta (1810-1885), pioneira do feminismo tupiniquim e autora do livro Direitos das mulheres e injustiça dos homens, é dificil evitar um pensamento menos absurdo do que parece: o de que o marido de Marcela Temer precisaria progredir um bocado para se tornar o que o pai do positivismo foi – um homem em sintonia com o século 19.

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Artigo publicado hoje em minha coluna no caderno Aliás, do “Estadão”.

Ressaca: da euforia ao mal-estar

1462093326175Os famosos “olhos de ressaca” de Capitu, uma das imagens mais famosas da literatura brasileira, não parecem dever nada ao mal-estar generalizado que acomete quem bebeu demais na véspera. Digo que não parecem porque, tratando-se de Machado de Assis, a cautela recomenda evitar afirmações categóricas: empacotar o máximo de sentido em um mínimo de palavras era com ele mesmo. Mas tudo indica que a acepção alcoólica de ressaca só surgiu no século 20, o que deixa para as botucas da titilante personagem de Dom Casmurro, romance lançado em 1899, apenas o sentido que o Houaiss define como “forte movimento das ondas sobre si mesmas, resultante de mar muito agitado, quando se chocam contra obstáculos no litoral”.

Ou seja: aquilo que açoitou a costa do Rio de Janeiro no último dia 21, feriado de Tiradentes, e que levou embora um naco da recém-inaugurada ciclovia Tim Maia, duas vidas humanas e o resto de credibilidade que o prefeito Eduardo Paes tinha como mestre de obras da “Cidade Olímpica”. Aí, sim, podemos garantir que à ressaca literal se somou a figurada. E que esta dor de cabeça não passará tão cedo.

Machado era um craque em trabalhar com ambiguidades, a começar pela indeterminação eterna que gira como uma ventoinha no coração de sua obra-prima, condenando os leitores a jamais saber se Capitu traiu ou não traiu Bentinho (minha opinião é que, se traiu, foi bem feito). No caso do olhar da moça, porém, a imagem marítima é explícita: “Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia nos dias de ressaca”, diz o doutor Bento Santiago sobre os olhos da jovem amada no trecho inicial do romance, quando tudo é calmaria. “Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros, mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me.”

A ambiguidade vem mais tarde, infalível como a subida da maré. Sendo basicamente um canalha, o narrador nada confiável retoma lá na frente a mesma metáfora, mas agora sem a inocência dos tempos de namoro, ao descrever sua mulher ao lado do caixão do amigo Escobar – que morreu afogado numa ressaca, justamente – tentando tragar o defunto com os olhos como fizera o oceano.

Se nos faltam elementos para dizer quão recatada era a bela Capitu, uma coisa é certa: Machado ensina que ressacas provocam estragos materiais e fatalidades no litoral carioca pelo menos desde março de 1871, quando Escobar foi vaidosamente imprudente (“Tenho entrado com mares maiores, muito maiores”) e se afogou na praia do Flamengo. Em contagem mínima e conservadora, vaidade e imprudência são dois dos pecados por trás da tragédia da ciclovia Tim Maia.

É provável que devam ser acrescentados à lista uma incompetência técnica alarmante, a leitura deficiente de Machado de Assis e o desconhecimento da conturbada história da relação do Rio de Janeiro com suas ressacas (a de 1913 foi tão violenta que entrou para o território da lenda). O fato de a empreiteira Concremat, que realizou a obra a um custo de R$ 45 milhões, pertencer à família do secretário municipal de Turismo, Antônio Pedro Viegas Figueira de Mello, indica que essa lista pode ir mais longe. Seja como for, hora de passar à acepção figurada.

O mal-estar está para a bebedeira que o precede como a sujeira deixada na areia da praia está para a agitação do mar que a provocou. Os dicionários de português não registram essa acepção intermediária, mas em espanhol – língua onde fomos buscar a palavra no século 16 – resaca tem, entre outros, o sentido de “limo ou resíduos que o mar ou os rios deixam na margem depois de transbordar”. Afinal, a expressão saca y resaca quer dizer antes de mais nada “fluxo e refluxo” das ondas, seu movimento de leva-e-traz. Não por acaso, a incômoda acepção pós-orgia existe também na língua de Sancho Pança, que enxugava tonéis de vinho como poucos.

A ressaca alcoólica, bem como a moral, é portanto a conta deixada pela festa, o emaranhado nada divertido de resíduos que sobra na margem depois de passada a diversão. A mesma ideia está presente no inglês hangover, palavra que, não se ligando propriamente ao mar, compartilha com a ressaca tanto o sentido de resíduos deixados para trás quanto o de “dor de cabeça forte ou outros efeitos retardados da ingestão excessiva de álcool” (dicionário Oxford).

Estará justificado quem, procurando a origem da ressaca carioca e brasileira deste momento, retroceder além da euforia obreira de preparação para os Jogos Olímpicos e for bater na porranca nacionalista que, nos anos Lula, moveu a vitoriosa candidatura do Rio junto ao Comitê Olímpico Internacional e a própria ideia de que o Brasil, mais do que estar no caminho certo, já tinha chegado lá. Como provam nossa enrascada política e a ressaca moral que se seguiu à votação do impeachment na Câmara, com seu deprimente clima de circo, o país só podia estar bêbado. Haja Engov.

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Este artigo foi publicado em minha coluna no caderno Aliás do “Estadão”.