O país passou sem escala dos anacolutos de Dilma Rousseff às mesóclises de Michel Temer. De um ponto de vista (digamos) psíquico-gramatical, a mudança faz o desfavor de sugerir que não há meio termo para o ser brasileiro: ou tropeçamos a cada passo na desestruturação lógica e sintática, tentando fazer com que palavras e coisas se encaixem a golpes de marreta, ou caímos na cafonice bacharelesca que azeita as engrenagens do discurso enquanto o afasta da fala popular e o torna marotamente difícil, concebido menos para se comunicar com cidadãos do que para mesmerizar multidões. Em algum lugar profundo de nossa mentalidade, há uma placa de bronze na qual, sob uma efígie de Rui Barbosa e com nota de rodapé informando tratar-se de tradução do latim, está gravada esta mentira: “Falar enrolado é sinal de uma inteligência superior”.
Sim, este artigo trata de uma mera questão de forma. Em primeiro lugar porque por trás desta, se procurarmos bem, sempre há belos nacos de conteúdo. Mas não é só isso. Num momento em que o provocador Sérgio Machado faz o papel daquela mulher canastronamente oferecida do “teste de fidelidade” da TV e convida todos a confessar seus pecados, revestindo as tramoias brasilienses de um ar chanchadeiro, começa a se esboçar para a história do impeachment um enredo em que todos os lados da guerra política se igualam no objetivo de salvar a própria pele da ameaça representada por um intruso togado que não sabe brincar. Perde força até entre dilmistas de carteirinha a tese do “golpe judiciário-midiático”, sobe a da “frente ampla do abafa”. Num contexto político em que distinções clássicas de conteúdo tendem a virar geleia, afogadas no tacho do fisiologismo universal, prestar atenção às diferenças de forma talvez ganhe ainda mais importância.
“Procurarei não errar, mas, se o fizer, consertá-lo-ei”, disse Michel Temer na última terça-feira, ao anunciar suas primeiras medidas econômicas ao lado do ministro da Fazenda, Henrique Meirelles. Para seu crédito, deu uma risadinha após a tirada de intercalar o pronome oblíquo átono entre o radical e a desinência de “consertarei”. Reconhecia assim o que já virou a principal marca de seu estilo. Desde o “sê-lo-ia” do discurso de posse, dia 12, vinha angariando elogios e críticas. Houve quem se derretesse pelo domínio linguístico demonstrado pelo sucessor de uma presidente incapaz de juntar lé com cré. Houve quem apontasse o descompasso entre aquela ostentação mesoclítica e os pequenos deslizes gramaticais que Temer de fato comete para defender a tese de um retrocesso de comunicação entre o “coloquialismo” de Dilma e a pompa do presidente interino.
A mesóclise é a colocação do pronome oblíquo átono no meio do verbo, interposto a ele, em vez de antes (próclise) ou depois (ênclise). Ocorre apenas com formas verbais do futuro (“consertá-lo-ei”) e do futuro do pretérito (“sê-lo-ia”). No português brasileiro moderno, é basicamente entulho, uma peça do ferro-velho gramatical. Isso não quer dizer que não se deva estudá-la nas escolas: é preciso, sim, conhecer a história da língua e ter instrumentos para ler sem susto textos de épocas diversas, não só o que se publica hoje na internet. Também não significa que a mesóclise seja inteiramente destituída de aplicação contemporânea: para o humor, como sátira do discurso de um personagem antiquado ou metido a besta, é recurso muito eficaz. Além disso, como demonstra Temer, sua utilidade é inegável para quem deseja ser um personagem antiquado ou metido a besta.
Jânio Quadros, o presidente brasileiro que mais abusou da mesóclise, também lançava mão da linguagem formal para compor um estilo, mas parecia pôr mais humor na receita: ser o que chamamos hoje de “figura” estava em seus planos. Tanto que, personagem maior que a vida, entrou para o folclore político como autor de frases que nunca disse: “Fi-lo porque qui-lo”, por exemplo, em que o “porque” (que deveria atrair o pronome) torna a segunda ênclise um erro feio. O risco maior, no caso de Temer, nem é o de soar como um político da República Velha, algo que ele parece até desejar. É ser abatido precocemente pelos sucessivos erros de seu governo e entrar para a história como o homem-mesóclise: aquele que foi intercalado brevemente entre as duas metades do segundo mandato de Dilma.
Mais que gramatical, o problema da mesóclise é de cultura. Faz mais de meio século que os linguistas sabem disso: colocação de pronomes não é camisa de força sintática. Depende da fonética, do uso, da história, do estilo de cada comunidade de falantes. Mesmo assim, os ultraconservadores insistem em impor a colocação lusitana como padrão, traço de subserviência cultural que chega a ser incompreensível, para não dizer imperdoável, quase um século depois da Semana de Arte Moderna. “É urgente afastar a ideia de que a colocação brasileira é inferior à que os portugueses observam”, escreve o autor da Moderna Gramática Portuguesa. Um radical? Longe disso: aos 88 anos, membro da Academia Brasileira de Letras, Evanildo Bechara é o mais respeitado gramático brasileiro vivo.
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Artigo publicado em minha coluna no caderno Aliás do Estadão.