Boicote: ecos da Irlanda rural agitam o Oscar

“Boicote” começou a virar a Palavra do Mês no último dia 18, quando o diretor Spike Lee anunciou que, mesmo tendo recebido um Oscar honorífico há dois meses, não comparecerá à cerimônia de entrega do grande prêmio do cinema americano no próximo dia 28. Motivo: pelo segundo ano consecutivo, não há um único negro entre os vinte atores que disputam estatuetas.

O diretor de Faça a coisa certa disse que não pretendia ser o líder de um movimento contrário à premiação da Academia de Artes e Ciências de Hollywood, mas observou que o cinema está atrasado em relação à música e ao esporte no combate ao racismo – o que é inegável – e invocou o poder da oratória de Martin Luther King: “Chega um tempo em que é preciso tomar uma posição que não é nem segura, nem política, nem popular, mas é preciso tomá-la porque a consciência nos diz que é a certa”.

Pronto. Entre nomes de menor peso, a adesão de Will Smith – arregimentado por sua mulher, a atriz Jada Pinkett Smith – deu ao time do protesto um astro de primeira grandeza e ajudou a garantir que a palavra “boicote” dominasse pelas duas semanas seguintes o noticiário de entretenimento nos EUA. As tradicionais especulações sobre filmes e atores favoritos, que a esta altura deveriam estar pegando fogo? Relegadas a um frio segundo plano.

Ian McKellen, gay militante, lembrou que a discriminação em Hollywood atinge os homossexuais também. A alva Charlotte Rampling, uma das concorrentes, apontou “racismo contra os brancos” no boicote – ideia que, mais do que questionável, é burrinha mesmo, equivalente a dizer que feminismo e machismo são só dois lados da mesma moeda.

Isso não significa que a questão seja desprovida de matizes cinzentos entre preto e branco. Hollywood é uma indústria portadora de menos melanina do que a média da sociedade americana, sem dúvida, mas o problema vai além do que Spike Lee apontou: também não há hispânicos ou asiáticos concorrendo este ano ao bonequinho careca, embora estes levem a desvantagem de ser menos curtidos do que os negros numa tradição de luta por igualdade de direitos.

Seja como for, até o presidente Barack Obama entrou no debate, dizendo que a diversidade é melhor para a arte. E hoje a especulação mais excitante no arraial de Los Angeles gira em torno do que dirá sobre o bafafá o comediante Chris Rock, mestre de cerimônias negro de uma festa branquíssima. Há quem lhe cobre adesão ao boicote – o que seria bombástico, mas parece improvável. De piadas polêmicas envolvendo os nomes citados acima será difícil escapar.

A Academia acusou o golpe. Não chegou ao extremo de instituir uma política de cotas para os indicados, ainda bem, mas fez mais do que vagas promessas de justiça: anunciou medidas para rejuvenescer e abrir às minorias o elenco de 6.261 membros com direito a voto (hoje estima-se que mais de 90% sejam brancos, com a idade média acima de 60 anos), revogando a vitaliciedade automática. Em outras palavras: quem ficar inativo por mais de uma década dança. (Até o momento não há sinais de um boicote proposto por atores e cineastas da terceira idade, mas talvez seja questão de tempo.)

Tudo isso volta a demonstrar o que ficou fartamente provado desde que a palavra inglesa boycott ganhou seu primeiro registro como substantivo comum, em fins do século 19: a coisa costuma funcionar. Que o diga o homem que batizou – à sua revelia, é verdade – essa forma de protesto.

O inglês Charles Cunningham Boycott (1832-1897), capitão reformado do exército britânico, trabalhava como administrador das vastas extensões de terra de um nobre inglês no oeste da Irlanda quando bateu de frente com a Irish Land League, o combativo sindicato de trabalhadores rurais, que lutava pela redução dos custos de arrendamento para seus associados. Corria o ano de 1880, momento histórico de grande agitação política e sindical em diversas partes do mundo. O milico não quis saber de conversa. Nem um penny a menos, decretou.

Não terá sido o primeiro boicote da história, mas foi o que primeiro ganhou o nome de boycott (a palavra chegaria ao português, com a grafia já aclimatada, em 1913). Os arrendatários de Boycott foram os primeiros a aderir ao gelo comandado pela Irish Land League, recusando-se a trabalhar para ele. Não demorou para que o movimento se espalhasse: logo lhe negavam atendimento no comércio local e até sua correspondência deixou de chegar.

O caso chamou a atenção da grande imprensa londrina, que lhe deu intensa cobertura de viés nacionalista, torcendo por Boycott. Não adiantou. A colheita nas terras administradas pelo homem foi feita com atraso por trabalhadores trazidos de longe, sob a proteção de centenas de soldados ingleses. Poucos meses depois, Boycott foi embora da Irlanda para nunca mais voltar.

O caso é tão interessante que admira não ter virado até hoje um dramalhão histórico hollywoodiano. Quem sabe algum produtor abra o olho agora que a palavra “boicote” roubou a cena. Difícil será encontrar papel para um ator negro nessa história.

*

Este artigo foi publicado em minha coluna no caderno Aliás do “Estado de S.Paulo”.

Chegado ou chego? Falado ou falo? (Opa!)

melhor chegoChegado é o único particípio do verbo chegar que a norma culta admite no Brasil e em Portugal.

Existem verbos de duplo particípio, chamados abundantes, como aceitar (aceitado e aceito) e gastar (gastado e gasto), mas chegar não pertence ao clube.

O particípio chego é uma criação popular documentada por linguistas em diferentes regiões de nosso país, em frases como “Quando distribuíram as senhas, eu ainda não tinha chego”.

Em versão substantivada, chego também tem forte presença na língua oral informal, numa expressão como “dar um chego”, isto é, “dar um pulo, uma passada” em algum lugar.

Mesmo assim, chego não encontra acolhida entre os gramáticos nem tem tradição de uso pelos chamados bons autores.

Caso semelhante é o de trago, particípio informal de trazer, de uso igualmente corriqueiro em frases como “Perguntei se ela tinha trago (por trazido) o presente” – e também condenado na norma culta.

*

Registram-se outras criações populares parecidas, ainda que menos disseminadas, como perco (particípio de perder) e falo (particípio de falar), no Brasil, e caço (particípio de caçar) em Portugal.

Vale notar que existe uma regularidade na formação desses “particípios irregulares” sem pedigree: como ocorre com os (legítimos) aceito, gasto, pago e outros, a forma do particípio popular coincide com a do presente do indicativo da primeira pessoa do singular: eu chego, eu trago, eu perco, eu falo, eu caço…

Não é improvável que, com o tempo, algumas dessas formas emergentes acabem encontrando abrigo na língua culta. O mundo dos particípios irregulares sempre conviveu com boa dose de instabilidade.

Pego, particípio irregular do verbo pegar, é aceito pelos gramáticos no Brasil (mas não em Portugal). Pode ser que um dia chego siga os passos de pego, mas hoje isso não parece perto de ocorrer.